Conhecida como uma das primeiras línguas surgidas em contexto de contacto linguístico no período dos descobrimentos, a língua cabo-verdiana, designação técnica correta ou crioulo / kriolu como é comum e carinhosamente apelidada pelos seus falantes é o marco identitário do cabo-verdiano. Tão antiga quanto o próprio homem cabo-verdiano institui-se como o resultado de uma situação de contacto de línguas, que se viveu na ilha de Santiago, nos idos do seculo XV, entre o europeu e o contingente africano, num binómio dominador versus dominado do ponto de vista social, em que o grande número de falantes de línguas diferentes, versus o pouco número de falantes da língua portuguesa, e a estabilidade desta situação de contacto, fez emergir num curto espaço de tempo, uma nova língua de comunicação, no século XVII. Esta língua se impôs num contexto de cinco séculos de dominação colonial portuguesa, sobrevindo como língua materna, língua ritual, língua cultural e língua vernacular. Entremeando, tal como em outras realidades de colonização, a língua do povo colonizador, no nosso caso, a portuguesa manteve-se como única língua oficial alvo de politica linguística de ensino, relegando à língua materna a gestão pelo seu próprio falante, que durante séculos o transmitiu informalmente, de geração em geração tornando-o num símbolo nacional cujo valor cultural, identitário e de memória é partilhado por todos os cabo-verdianos, catapultando-a assim, para espaços considerados formais ( igrejas, parlamento, instituições públicas) na mira de se constituir um bilinguismo efetivo.
ler maisAs primeiras incursões pelo estudo das línguas designadas crioulas datam do século XIX, com Adolfo Coelho no ensaio “Os dialectos românicos ou neolatinos da Africa, Asia, e América” reeditada pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1967 e textos de António de Paula Brito “Crioulos-portugueses. Apontamentos para a gramática do crioulo que se fala na ilha de Santiago de Cabo Verde”, 1885, que foram revistos por Adolfo coelho, importante filólogo português e, ainda, textos de Joaquim Vieira Botelho da Costa e Custódio José Duarte “O Crioulo de Cabo Verde. Breves Estudos sobre o Crioulo das Ilhas de Cabo Verde” oferecidos ao Dr. Hugo Schuchardt, contemporâneo de Adolfo Coelho e também pioneiro na valorização das línguas crioulas.
De Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Napoleão Fernandes, passando por Baltazar Lopes da Silva, Dulce Almada Duarte a Manuel Veiga, escritores, poetas, linguistas contemporâneos, a língua cabo-verdiana tem sido objeto de estudos nas suas mais variadas vertentes pressupondo a sua afirmação e valorização enquanto elemento identitário. Literatura, música, teatro têm sido áreas performativas de excelência na sua valorização e testemunhos da sua capacidade para estabelecimento do diálogo intercultural, visto também ser a língua de referência entre os cabo-verdianos e a comunidade estrangeira residente em Cabo Verde.
Não obstante as vicissitudes associadas à sua normalização para o uso na escrita e a oficialização, a língua cabo-verdiana é o elemento de comunicação e de transmissão de valores culturais com o qual todos os cabo-verdianos se identificam, independentemente de serem falantes ou não desta língua. O mesmo reconhecimento é demostrado por qualquer cidadão que passa por Cabo Verde, que aqui vive ou ainda que convive com os cabo-verdianos na diáspora, pelo que o reconhecimento oficial enquanto património imaterial e símbolo da cabo-verdianidade dar-lhe-á o prestígio e a dignidade condizentes com as funções que desempenha nas várias esferas da sociedade e além-fronteira. A recente candidatura da morna a património cultural imaterial da humanidade é exemplo coevo da capacidade de a língua cabo-verdiana extrapolar fronteiras e se afirmar como fator da diversidade cultural e linguística no mundo global, como demais foi sobejamente demonstrado e reforçado em outras ocasiões.
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